O que interessou ao grupo que se reuniu para este olhar a cidade foi a forma como cada um sente esse território que também é de afectos, de tradição e de cultura, muito antes de ser esse traço e essa intervenção que cria aquilo a que se chama urbanismo.
A cidade é aquilo a que se chega sem vontade de fazer poesia, mesmo que se queira, como fez Diana Pimentel, professora universitária, ensaísta e outra das intervenientes no encontro, criar um roteiro poético como quem desenha um mapa que define os passos e orienta os sentidos. Porque, afinal, tal como acontece com a poesia, talvez a melhor forma de contemplar as cidades seja de helicóptero, sobrevoando as palavras de poetas que debruçaram o olhar sobre esse território concreto onde a vida acontece.
E porque as cidades também são vida e pessoas e imperfeições e recantos, a revista 'Fundamentos', do Colégio de Arquitectos de Madrid, chefiada por Arturo Franco, poderá vir a dedicar um número ao Funchal. Precisamente porque não se interessa pelas grandes obras, mas sim pelos pequenos recantos. É uma revista diferente, que olha a arquitectura para além do traço, da perfeição, dos projectos. Como explica Arturo Franco, é uma revista de arquitectura com compromisso social. Um compromisso que não é activismo, nem provocação, mas que revela uma sensibilidade face ao homem e à natureza. "Não é para provocar acções, mas sim para entender como as pessoas pensam, como vivem, com o que sofrem, o que desfrutam".
Neste olhar amplo cabe tudo. E também cabe a arquitectura que é tudo: um simples guarda-chuva, uma rua, um vestido, um saco de dormir...
Referindo-se à iniciativa que decorreu no Funchal, disse que o olhar sobre esta cidade será sempre cheio de todas as coisas que foram faladas no encontro 'Vamos falar de cidade'. Das pedras de João Baptista, das árvores de Raimundo Quintal, dos animais de Manuel Biscoito. A ideia é descobrir e recuperar valores para a arquitectura que se estão a perder, não só em termos urbanísticos, mas tantos outros valores. "A nossa revista reage contra toda a frivolidade, as cores, o superficial o epidérmico. Por isso, vamos à China e não vamos a Xangai, nem vamos a Pequim. Vamos para descobrir e desvendar outras coisas, para desvendar questões".
Arturo Franco viu a cidade do Funchal com o primeiro olhar de quem chega e fica pouco mais de dois dias. Mas revelou que esse olhar está contaminado por um outro anterior, por aquilo que Paulo David lhe falou sobre esta cidade no Atlântico. E Paulo David falhou-lhe de uma paisagem, de um território, de uma certa tradição que se está a transformar. E quando aqui se fala em perda, Arturo Franco diz que nem lhe interessa as habituais críticas que se fazem a propósito de uma cidade turística que cresce desenfreadamente.
"Não nos interessa, desde logo, o turismo, não nos interesse o espectáculo, não nos interessa o aparente. Interessa-nos os pequenos recantos da ilha, a forma de trabalhar o pavimento, onde se mistura a engenharia e a arte. Interessa-nos a autenticidade". Até porque o resto, desgraçadamente, é o que acontece em todos os locais turísticos. O que interessa é recuperar outros valores, e olhar com os olhos de muitos anos, para não perder esse olhar sensível à matéria, à tradição, aos sistemas construtivos de toda uma vida. E tudo isto deve ser feito de um ponto de vista contemporâneo. Arturo Franco diz que este olhar primordial nada tem que ver com classicismo, nem com a defesa de que tudo permaneça ancorado no tempo. O necessário é um certo respeito em relação ao passado, mas sempre com um olhar no futuro.
a minha cidade são todas E se foi Paulo David que transportou esse primeiro olhar do Funchal até Arturo Franco. Interessa saber que olhar é esse. Citando Sisa Vieira, o arquitecto diz "que a minha cidade são todas". É esse encanto que encontra no Funchal, onde os caminhos de autenticidade se cruzam com um pouco de todas as outras cidades.
E este caminho comum faz-se de um percurso de mistério que as próprias cidades introduzem na descoberta, na vivência, no produto humano que é a malha urbana.
Nesta equação cabe também a ideia de arquitectura que, mais uma vez, Paulo David partilha com Arturo Franco. Uma arquitectura sem arquitecto, porque "a cidade histórica é uma cidade sem arquitecto, que todos andam exaustivamente a defender e com a qual todos se identificam" "Gostamos das ruas antigas e muitas delas não têm arquitectos. A cidade prevista, a cidade desenhada aparece muito mais tarde. A cidade para mim pode ser marcada não só por esses espaços calculados e planeados, mas por um encontro, por uma mescla e uma contaminação de edifícios, de pessoas, de cheiros, de cores".
Paulo David diz mesmo que, cada vez mais, a cidade de hoje deixou de estar configurada entre muros. A velocidade, as infraestruturas que foram surgindo fizeram mudar o conceito de cidade para o conceito de urbano.
O conceito alargou-se e o que hoje temos é a cidade continuada, que é precisamente aquilo que está a acontecer no território regional. Por exemplo, temos já alguma dificuldade em decifrar onde termina o Funchal. Esta percepção leva a um reposicionamento, à necessidade de usar "uns binóculos para reenquadrar a paisagem".
Paulo David defende, no entanto, que esta mudança, este reposicionamento, este olhar que reenquadra a paisagem não deve ser "um mau luto daquilo que perdemos". Pelo contrário, o que há a fazer é uma análise contemporânea sobre aquilo que se está a verificar nos territórios. E sobre esta perspectiva a Região Autónoma é um caso único, pelas velocidades introduzidas numa geografia que é, pela sua essência, de tempos lentos.
"A observação e a contemplação é de tempos muito longos e o que hoje se passa no território é uma introdução de velocidade. E introduz-se a velocidade com as infraestruturas que surgiram por um desejo intenso e moderno de conexão", explica. Mas é precisamente por isto que considera o território da Madeira "extremamente apaixonante, porque ainda permite uma relação idílica com a paisagem, mas simultaneamente uma paisagem já transformada pela aceleração na geografia".
Recorda, a propósito, que antes, no tempo da infância de muitos de nós, usava-se a expressão vamos ao campo. "Mas se hoje disser isso ao meu filho, ele não sabe do que estou a falar. Nenhuma criança sabe". Não sabem simplesmente porque se perdeu essa noção. Quando se diz campo remetemos o nosso ideal para uma paisagem agrícola e rural. Mas até essas paisagens não são estáveis e têm sofrido muitas alterações. Hoje temos de conciliar um terreno agrícola com uma via-rápida por cima. "Esta imagem não é uma imagem que convocamos como identidade. Daí que tenhamos de procurar uns óculos para redefinir"
O segredo é saber como se compagina essa lentidão do olhar com essa rapidez e alteração geográfica.
Paulo David diz que tem tentado responder a isso com a arquitectura que desenvolve. Refere o exemplo da Casa das Mudas, que procura ser um contratempo, um ponto de paragem.
"Na minha infância a ida para o campo justificava-se pela paragem. Hoje em dia, quando se atravessa o território regional, não existem paragens. Há uma ida a 120 à hora, mas aquilo que eu construí como território de paisagem foi a 40 à hora ou a 20 à hora, que era a velocidade do carro do meu pai. Era um percurso serpenteado por toda a paisagem, com paragem nos miradouros, que, só por eles, justificavam a viagem".
Este foi um percurso que se perdeu nessa possibilidade de viagem a 120 à hora.
A questão que se coloca nessa perda e nessa velocidade é a de como vamos responder à tradição com um território alterado a uma grande velocidade. Com uma realidade "na qual se passou de um sub-desenvolvimento para um hiper-desenvolvimento num curto espaço de tempo, sem nunca termos uma espécie de 'mind the gap'". O que existiu foi um salto, uma passagem repentina.
Paulo David entende que este salto era inevitável, mas traz também novos desafios. O desafio é voltar a centrar o conhecimento na observação. E o desafio da arquitectura é criar esses espaços de visão num percurso que é feito a 120 à hora. Porque o que hoje acontece "é uma espécie de viagem de submarino, onde de vez em quando se vem à superfície e se torna depois a mergulhar". A Casa das Mudas procura contrapor precisamente esta realidade de submarino. Paulo David diz que se fala muito da Casa das Mudas como espaço de arte, mas além dessa vertente, que é sem dúvida importante, aquela estrutura que criou interessa-o também, e essencialmente, como percurso numa paisagem. Curiosamente existem já muitas pessoas que usam aquele Centro de Arte como mirante. "Era isso que nós queríamos, ou seja, que por si só o edifício justificasse uma viagem e justificasse uma paragem. Até poderia ser uma forma de entrar e convocar outras formas de contemplação. Mas essa contemplação far-se-ia de forma organizada como centro de arte, e de forma expontânea como mirante e paragem".
Paulo David diz mesmo que, na actualidade, um dos temas mais entusiasmantes é esta nova realidade de aceleração, que não surge apenas na paisagem, mas também a outros níveis, e que introduz uma outra identidade que ainda não sabemos identificar. E é esta identidade célere que tem a necessidade de criar paragens para que o nós seja repensado.
Foi isso que tentou fazer quando realizou recentemente o primeiro encontro multidisciplinar para pensar a cidade. Um encontro que quer repetir e que pretende ser um auxílio no entendimento do território. "No fundo, o que tentei fazer neste encontro, para se discutir a cidade, foi convocar, de um só fôlego e de uma forma abrangente, pessoas que estudam essa mesma cidade. É que, por vezes, basta olhar de uma outra maneira para ver melhor".
Uma sala cheia para a cidade
Vamos falar de cidade O desafio foi lançado pelo arquitecto Paulo David a um grupo de pessoas de áreas tão díspares, como a música, a arte, a geologia e a arquitectura. A iniciativa foi marginal à Feira do Livro, foi pouco divulgada, mas conseguiu uma sala cheia de gente, que, no fim de uma tarde de sábado, ficou a ouvir sobre a sua cidade.
E valeu a pena porque se abordou de forma apaixonada a vulnerabilidade do território através das "topografias esculpidas" , e porque se percebeu, por exemplo, que o turismo não se reduz ao movimento do aeroporto ou mesmo aos preços de balcão dos hotéis ou às taxas de ocupação ou à promoção , mas sim porque "a Cidade e o Turismo" deve investir nas "atmosferas" do estar na Ilha. Porque a climatização da estrutura verde da Cidade conta toda a história de uma cidade de génese portuária, da emigração, da colonização.
Foram vários olhares que usaram como matéria o nosso território explanando o nosso estado psicológico, o lado idílico, o transformado em estado lento que sempre acrescentou valor, ou o acelerado que ainda não sabemos identificar mas que cria "lugares comuns", mas já com vida.